A existência durante a guerra fria, o desespero comum compartilhado por seres humanos e o cansaço de quem existe apenas para observar, três elementos essenciais para dar forma a Asas do Desejo, um dos filmes mais profundos do século 20.
Asas do Desejo, dirigido por Wim Wenders em 1987, é um filme poético e contemplativo que nos transporta para uma Berlim dividida pela Guerra Fria. A trama segue a perspectiva de dois anjos, Damiel e Cassiel, seres imortais e invisíveis aos humanos, que observam a vida na cidade, ouvindo os pensamentos, as dores e as alegrias de seus habitantes.
Eles pairam sobre a cidade, presenciando tanto a grandiosidade quanto a melancolia da existência humana. Embora possam confortar os humanos com sua presença invisível, eles não podem intervir diretamente ou sentir as emoções que observam.
Damiel, o anjo mais melancólico, começa a desejar a experiência humana. Ele quer ser visto, quer conversar com pessoas que o vejam, quer experimentar um café quente e esfregar as mãos quando estiver muito frio. Quando ele conhece Marion, uma trapezista muito talentosa, ele se apaixona por ela e decide que se tornará um ser humano.
A transição de Damiel para a humanidade é retratada de forma simples e significativa. Quando o mundo finalmente ganha cor para ele, já que os anjos enxergam tudo em preto e branco, é possível se emocionar com o simples fato dele enxergar as cores pela primeira vez e ficar encantado como só uma criança conseguiria ficar.
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O filme traz uma mensagem muito forte sobre como a normalidade basta, sobre como coisas simples como tomar um café ou fumar um cigarro, podem trazer um prazer imenso, mas mostra também a dualidade da vida, com todos aqueles pensamentos agoniantes ouvidos diariamente pelos anjos.
Por isso, apesar da felicidade de Damiel chegando ao mundo e conhecendo todas as experiências do zero, eu não pude deixar de pensar: Qualquer tipo de existência traz sofrimento para aquele que a experimenta?
Veja bem, Damiel e Cassiel estão há milhares de anos acompanhando a vida na Terra. Eles não sabem o que é sofrer, não sabem o que amar, não sabem qual é a sensação que uma música traz e muito menos sabem o que é sentir um outro corpo junto ao deles. Eles vivem toda uma eternidade dentro daquele vazio existencial. Criados apenas para comtemplar as alegrias e as tristezas de pessoas que eles nunca vão, de fato, conhecer.
Por outro lado, temos as pessoas que vivem na Terra e que vivenciam, todos os dias, todas as experiências que Damiel gostaria de vivenciar. Mas essas pessoas estão tão cansadas, que novidade nenhuma é capaz de trazer alívio para esse cansaço. Viver é bom, amar é bom, chorar é bom, tomar um café é bom, mas nada dessas coisas valem o peso da existência, do medo diário e da solidão tão conhecida dentro deste Universo imenso, mas completamente desconhecido.
E essa é a uma das coisas mais interessantes do filme, a coexistência de dois desejos tão latentes, o desejo de sentir e o desejo de não sentir mais nada.
Se existem seres imortais querendo sentir, existem também seres mortais querendo parar de sentir.
Sentir é melhor do que não sentir? Se fossemos seres imortais, teríamos esse desejo tão grande de vivenciar todas as experiências que nunca sentimos na Terra? Como seres mortais que somos, trocaríamos a nossa existência cheia de sentimentos físicos e psíquicos por uma vida repleta de vazios físicos e mentais?
Perguntas difíceis de responder já que cada pessoa pensa e enxerga a vida de uma forma. Mas mesmo não tendo condições de respondê-las, nós sabemos que sentindo ou não sentindo, a existência de qualquer ser é repleta de dores e desespero pelo simples de fato de existirmos. No filme, os anjos queriam sentir porque eles não conheciam nada sobre isso. Na Terra, as pessoas queriam parar de sentir, porque elas conheciam demais sobre a vida e preferiam não ter esse conhecimento.
Dois desejos latentes retratados de forma brilhante e imersiva, já que durante o filme é impossível de não se ver completamente imerso em todas aquelas questões existenciais.
Assista Asas do Desejo com a mente aberta para experimentar esses dois sentimentos tão opostos e se prepare para chegar a conclusão de que apenas as crianças são seres evoluídos o suficiente para viver em paz em um mundo onde elas acabaram de chegar. Só elas conseguem ter o melhor dos dois mundos, o de sentir todas as experiências novas pela primeira vez e o de não sentir absolutamente nada já que elas ainda não se transformaram no pior versão que elas podem ser: adultos cansados e preocupados que já sentiram demais e que hoje, talvez, escolheriam não sentir.
Leia o poema de Peter Handke que é citado durante o filme:
Quando a criança era criança,
andava balançando os braços,
queria que o riacho fosse um rio,
que o rio fosse uma torrente
e que essa poça fosse o mar.
Quando a criança era criança,
não sabia que era criança,
tudo lhe parecia ter alma,
e todas as almas eram uma.
Quando a criança era criança,
não tinha opinião a respeito de nada,
não tinha nenhum costume,
sentava-se sempre de pernas cruzadas,
saía correndo,
tinha um redemoinho no cabelo
e não fazia poses na hora da fotografia.
Quando a criança era uma criança
era a época destas perguntas:
Por que eu sou eu e não você?
Por que estou aqui, e por que não lá?
Quando foi que o tempo
começou, e onde é que o espaço termina?
Um lugar na vida sob o sol não é apenas um sonho?
Aquilo que eu vejo e ouço e cheiro
não é só a aparência de um mundo diante de um mundo?
Existe de fato o Mal e as pessoas
que são realmente más?
Como pode ser que eu, que sou eu,
antes de ser eu mesmo não era eu,
e que algum dia, eu, que sou eu,
não serei mais quem eu sou?
Quando uma criança era uma criança,
Mastigava espinafre, ervilhas, bolinhos de arroz, e couve-flor cozida,
e comia tudo isto não somente porque precisava comer.
Quando uma criança era uma criança,
Uma vez acordou numa cama estranha,
e agora faz isso de novo e de novo.
Muitas pessoas, então, pareciam lindas
e agora só algumas parecem, com alguma sorte.
Visualizava uma clara imagem do Paraíso,
e agora no máximo consegue só imaginá-lo,
não podia conceber o vazio absoluto,
que hoje estremece no seu pensamento.
Quando uma criança era uma criança,
brincava com entusiasmo,
e agora tem tanta excitação como tinha,
porém só quando pensa em trabalho.
Quando uma criança era uma criança,
Era suficiente comer uma maçã, uma laranja, pão,
E agora é a mesma coisa.
Quando uma criança era criança,
amoras enchiam sua mão como somente as amoras conseguem,
e também fazem agora,
Avelãs frescas machucavam sua língua,
parecido com o que fazem agora,
tinha, em cada cume de montanha,
a busca por uma montanha ainda mais alta, e em cada cidade,
a busca por uma cidade ainda maior,
e ainda é assim,
alcançava cerejas nos galhos mais altos das árvores
como, com algum orgulho, ainda consegue fazer hoje,
tinha uma timidez na frente de estranhos,
como ainda tem.
Esperava a primeira neve,
Como ainda espera até agora.
Quando a criança era criança,
Arremessou um bastão como se fosse uma lança contra uma árvore,
E ela ainda está lá, chacoalhando, até hoje.
Confira o trailer do filme Asas do Desejo:
Onde assistir: Prime Video.